Muita coisa pode ser coisa da minha cabeça, mas o tempo não é uma delas. E esse agente implacável há de afirmar que a ‘Era Heung-Min Son’ acabou. Pode ser agora, pode ser depois, mas sem dúvida será.
A pergunta “Por que está tão triste, ó minha alma?” dá início a um dos trechos do salmo 42, versículo 11. Minha resposta é que, ao imaginar esse inevitável mundo pós-Son, o Tottenham não tem cara.
Parte da convicção do alto clero do clube para a venda de Harry Kane veio da tranquilidade de ter, em Sonny, um embaixador institucional à altura - função que, além de ser um fardo em campo, carrega responsabilidade ainda maior fora dele. E o sul-coreano, cidadão modelo que mora com os pais e não namora e não dirige bêbado e gasta sua fortuna com caridade e carros e roupas, o faz de forma impecável.
Cuti Romero (se ficar) e James Maddison, imagino, não devem ser promovidos a esse posto. Para ambos, eu diria, falta um certo equilíbrio no espectro da personalidade marketeira. Continuam sendo ótimos capitães, mas têm marcas pessoais complexas demais pra se tornarem o rosto do clube.
“Ele é a salvação da minha face”. É assim que o versículo supracitado termina. Ele, portanto, é aquele que salva não só a alma, mas também a expressão do ser, devolvendo dignidade, alegria e identidade. E na fôrma da nossa sopa primordial pós-Ange, não existe peça mais perfeita a ser encaixada do que Eberechi Eze.
É a cara do Tottenham. E talvez não tenha flertado à toa. Se não se repetir o que rolou com Dybala e outros (desistir de um talento capaz de mexer ponteiros por discordâncias contratuais) nem o que rolou com Maddison e outros (contratar três anos depois alguém que deveria ter vindo três anos antes), todos seremos felizes.
Ele representa uma categoria de jogador das mais apaixonantes. Não é um maestro, mas está estatisticamente na elite do continente no que diz respeito à passes chave por jogo. Não é um ponta rabisqueiro, mas seus 821 dribles (96% de acerto!!!) na última Premier League o colocam entre os mais insuportáveis do campeonato com bola nos pés.
Um dos criadores que mais aterroriza na condução de bola e um dos especialistas em 1x1 que mais encontram espaços com passes no último terço do campo. Eficiente na criação e letal nas transições. Eberechi é um grande cuscuz de capacidade de direcionamento de jogo e potencial de desequilíbrio individual. Fatores que fazem dele um jogador único.
Além de ser uma combinação deslumbrante entre maestro e driblador, Eze ainda tem algo que nem Kane nem Son possuem: um gol em final.
É foda porque parece brincadeira, já que esse tipo de dado não diz muita coisa na prática, mas as entrelinhas trazem algo sério: ter carregado o Crystal Palace com 4 gols em 5 jogos na jornada histórica da última FA Cup, incluindo o gol do título sobre o Manchester City, mostra que ele tem o perfil de liderança e o senso de responsabilidade que, convenhamos, nenhum dos últimos garotos propaganda do Tottenham conseguiu efetivamente traduzir em campo, mesmo sendo objetivamente jogadores melhores.
Criativamente, inclusive, ele é uma adição urgente à equipe. Se Maddison entorta um pé ou Kulusevski pega uma gripe, o setor ofensivo tem pouco ou quase nenhum recurso pra superar qualquer bloqueio. E só na última Premier League, Eze deu 197 passes certo quebrando linhas. Perto disso, Brennan Johnson pratica outro esporte.
Aos 26 anos, o meia vive sua plena maturidade futebolística. Tem a habilidade, a inteligência, a marra, a confiança e uma medalha pra eventuais respaldos. Pra melhorar, Eze ainda conta com boas narrativas para fazê-lo um novo ícone do clube.
Ele treinou pelo Arsenal quando criança e foi dispensado. Passou por Fulham, Reading, Milwall e mais uma cacetada de clubes, sendo dispensado de todos até vingar no QPR e se firmar no Palace. Toda sua jornada de superação aconteceu em Londres e arredores.
Aliás, o sul da capital inglesa, onde ele nasceu e cresceu, é uma das zonas que ano após ano ainda se destaca por altas taxas de violência e criminalidade. E é nesse contexto que a figura de Eze fica ainda maior, graças aos torneios beneficentes que ele organiza desde que tinha 24 anos, com o intuito de “expor garotos e garotas a oportunidades além do rap ou do futebol, que é a regra na região. Mostrar novas possibilidades. Além de dar comida de graça, chuteiras de graça… coisas com que a gente sonhava quando era criança.” (Depois, inclusive leia isso aqui. É bom pra entender a magnitude da personalidade do craque.)
Ebere ainda joga xadrez bem pra porra. Acho isso demais. O técnico Alan Pardew (que não foi seu treinador, mas é seu vizinho!) falou que “não surpreende, porque quando ele joga futebol, tudo o que faz também é estratégia. Ele passa a bola quando deve e cruza a bola quando deve. Ele finaliza quando deve e defende quando deve. E faz isso o tempo todo. Tem o equilíbrio perfeito.” É loucura. Que moleque especial.
O grande problema é que tudo é bom demais pra ser verdade. Um dos jogadores com mais cara de Tottenham da história ser ignorado em troca da manutenção do sionista Manor Solomon dentro do elenco é um cenário mais fácil de imaginar, considerando a relutância de Daniel Levy em ativar a cláusula de rescisão do meia (em torno de £60 milhões) e a complexidade em lhe oferecer um salário realmente competitivo. Mas ele não deveria ser um plano a ser discutido. Deveria ser prioridade máxima e inquestionável.
Eze já provou que é confiável para subir o nível do clube em campo e fora dele. É de fato a salvação da nossa face. Thomas Frank declaradamente o vê com bons olhos há algum tempo. O próprio Son já está na orelha dele tem alguns anos (prova 1, prova 2). E contratado ele finalmente pararia de fazer gols no Tottenham, como é costume. No fim nem seria uma aposta, tamanha a garantia de acerto. Que venha.
Em Salmos 16:8, lê-se: “Com ele à minha direita, não serei abalado.” Tenho certeza que jogando pela esquerda ou por dentro também. “Por isso, o meu coração se alegra e no íntimo exulto; o meu corpo também repousará seguro.” Os corações e os corpos de todos nós. Amém.