O que eu lá vou saber sobre títulos?
Um Tottenham paradoxal chega a uma decisão gigantesca
É difícil traçar paralelos, desenhar metáforas ou inventar comparações. É uma daquelas sensações que contorcem como um embrulho de papel alumínio amassado lá no fundo da alma, ao mesmo tempo que alimenta cada fibra do corpo com a mais pura euforia.
O pior Tottenham da última década vai jogar uma final continental. O coletivo menos inspirador que tivemos desde a saída de Gareth Bale (do antigo testamento) pode pôr um fim em 17 anos de seca. O time que me faz querer agradecer pela finitude de cada série de 90 minutos pode efetivamente se tornar infinito.
“Depois do que aconteceu com o Pochettino, eu não acredito em merecimento”, disse um grande amigo. O que vale para o bem e para o mal. Se lá em Madrid fomos orgulhosas vítimas das circunstâncias, em Bilbao, seis anos depois, vai cair no nosso colo a chance de conhecer o prazer do oportunismo.
Todos os times do Tottenham que nos brilharam os olhos no passado recente foram mais merecedores de qualquer respingo de reconhecimento do que este. A caminho de igualar o recorde de derrotas numa edição de Premier League sem ser rebaixado (21, pra quem quer saber; do Aston Villa, em 2020), este grupo carece consideravelmente de qualidade técnica, de aptidão física, de capacidade tática, de liderança e de uma cacetada de outras coisas inegociáveis para se competir em alto nível.
Ao mesmo tempo, uma série de dádivas (como o renascimento de Rodrigo Bentancur, os lapsos de genialidade de James Maddison, o pé direito de Pedro Porro, a presença infalível de Brennan Johnson no segundo poste e a simples existência de Lucas Bergvall) ajudam a segurar o cenário em pé. São essas benesses que nos impedem de esquecer onde o sarrafo está (ou deveria estar).
Nas rédeas deste Ange Postecoglou de Schrödinger, que está ao mesmo tempo intocável e demitido, os Spurs jogam um futebol fraco o suficiente pra garantir que cada resultado seja, de fato, um suspiro de grandeza. E assim, de suspiro em suspiro, chegamos a um só joguinho de distância da extinção de um trauma geracional.
Torço muito, inclusive, para que a final (em caso de vitória) seja das partidas mais emblemáticas e viscerais e intricadas que já vi na vida inteira, para compensar pela esquecível trajetória até ela.
Quer dizer, tem quem não ligue pra essas coisas tendo uma taça na mão, mas é fato que o Tottenham involuiu. É hoje um substrato do pó do resto do time que se despediu invicto do White Hart Lane (que daqui a pouco faz dez anos!!!), tendo ainda o frágil e inconsistente Heung-Min Son como ícone. Talvez por isso, tenho pra mim que só uma pequena Odisseia no San Mamés faria realmente valer os últimos anos de anticlímax e regresso.
No próximo dia 21, cada coração terá lições e realizações a serem tiradas caso o troféu da Europa League acabe decorado com fitas azuis e brancas. Vale mais um ano ruim com título ou uma década de alta consistência na seca? Vale mais um projeto pra dominar o futuro ou um plano pra petiscar o presente? Mathys Tel é bom ou ruim de bola? Talvez essa última continue sendo a mais difícil de se responder de bate-pronto.
E nem gosto de pensar no que vai ser se o troféu acabe decorado de vermelho, pois não haverá margem para salvação no pântano seco que vai virar o norte de Londres. Contra um Manchester United que não ganha de nós em nenhuma competição há três anos? Quero ignorar o cheiro de tragédia. Quero tentar acreditar na benevolência desse universo que já nos tirou tanta coisa boa.
No fim, me divido em medo e entusiasmo ao pensar que as definições de certo e de errado, de bem e de mal, de alegria e de tristeza que construíram os últimos anos de clube (e que ainda construirão os próximos) estarão pra jogo nessa finalíssima. Ou, sei lá, vai ser só um dia como algum outro. O que a gente lá sabe sobre títulos, não é?
O que sei é que tudo isso é sintoma de um diagnóstico simples: o Tottenham existe pra testar o tamanho do espectro do sistema límbico humano. Que horror. E que delícia!
o texto é melhor do que qualquer partida que o Tottenham fez esse ano (e é por isso que vou torcer pra ganharem dia 21)